Heinz Emigholz: irreverência e desmistificação na fotografia arquitetônica

A fotografia é historicamente utilizada para documentar a arquitetura. Já no primeiro registro fotográfico, o objeto capturado foi a propriedade do seu inventor, Joseph Nicéphore Niépce. Apesar de comumente vista sob a ótica de registro da verdadeira obra de arte (o edifício capturado), a fotografia arquitetônica, mais do que um instrumento a serviço dessas estruturas, é uma arte por si só e, dessa forma, possui linguagem e questões estéticas próprias.

Linhas verticais paralelas e boa iluminação natural são dois dos principais dogmas da fotografia arquitetônica que se consolidaram ao longo dos anos e são aplicados exaustivamente no ramo mais comercial da área. O resultado disso é a promoção de um certo engessamento generalizado na estética da arte do registro das estruturas e uma relativa assepsia das obras retratadas.

É certo que essas convenções não impediram o surgimento de fotógrafos que exploram ângulos e texturas diversas, efeitos de luz diferenciados, a presença de pessoas, ou sequer o aparecimento de alguns traços autorais identificáveis na obra desses profissionais. No entanto, diversas vezes, elas ainda são um obstáculo para uma certa humanização mais significativa no registro e a arquitetura acaba por adquirir um tom artificial, ou mesmo intangível, para o expectador que a observa através de uma fotografia profissional.

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Fotografia de Michael Wesely

Alguns fotógrafos de veia mais radical, como Michael Wesely, se afastam dessas regras, mas não parecem figurar catálogos ou artigos sobre a obra registrada. Esses artistas acabam confinados, por assim dizer, às galerias de arte e museus, já que ao inovar separam-se do registro arquitetônico tradicional e causam certo estranhamento, à medida que põem a arquitetura em segundo plano e adquirem um caráter de arte “autossuficiente”, que propõe uma relação de impacto sensorial com o retrato, e não com a estrutura retratada.

Ao retomar dos anos 1920 os princípios estéticos da fotografia construtivista e do cinema expressionista alemão, e ao injetar um certo grau de amadorismo em seus filmes, Heinz Emigholz combate essa certa assepsia generalizada da área, buscando um realismo palpável e uma consequente humanização completamente evidentes. De certa forma, ele desmistifica as obras arquitetônicas que escolhe gravar.

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Imagemde Sullivans Banken (2001), de Heinz Emigholz.

É nítido que seus longas recusam o papel último de captura de uma arte terceira e, ao reconstruir o portfólio de arquitetos modernos emblemáticos, exploram as possibilidades artísticas do registro arquitetônico sem qualquer respeito às regras sacralizadas pelos atuantes da área – a própria opção pelo formato fílmico já é um prenúncio do desafio aos limites dessa forma de expressão.

Os filmes do projeto “Arquitetura como Autobiografia” consistem, basicamente, em uma sequência de longos planos estáticos que dissecam a espacialidade de edifícios e outras estruturas selecionadas do arquiteto ou engenheiro-título do longa. As obras são organizadas de forma cronológica, investigando a evolução estilística da carreira do autor, e as imagens não são acompanhadas de qualquer narração em off ou trilha sonora. É esse caráter contemplativo dos planos que leva o cineasta a se referir a eles como “fotografias” – e o que é o cinema, senão 24 fotografias por segundo?

De certa forma, Emigholz inverte a lógica de La Jetée (1962) de Chris Marker. Enquanto lá o radicalismo da baixíssima cadência gerava planos que são fotografias literais, aqui os planos no tripé as simulam ainda mantendo os 24 quadros por segundo. Desse modo, pode-se dizer que esses filmes remetem até ao cinema documental primitivo dos irmãos Lumière e levam ao pé da letra a definição original de cinema como “fotografia em movimento”.

Esses documentários apresentam-se como uma espécie de sequência contemplativa de slides que examina várias perspectivas dos volumes, sempre optando por pontos de vista alcançáveis pelo expectador físico. Isso por que os filmes são a expressão da vivência pessoal do diretor percorrendo cada obra.

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Imagem de Sullivans Banken (2001), de Heinz Emigholz..

Na busca por esse olhar mais humanizado, os longas são dotados de um amadorismo que remete até mesmo às fotos de turistas. Através de planos oblíquos, subexpostos ou estourados, Emigholz revela ângulos inusitados e naturaliza espaços ao desacatar obras outrora mistificadas pela disciplina da fotografia arquitetônica comercial. Assim, enquanto testa os limites do registro arquitetônico, ele examina os espaços que documenta com uma impressionante honestidade.

Há uma certa rixa entre nós [Emigholz e os fotógrafos tradicionais de arquitetura]: às vezes, esses fotógrafos vêm aos meus filmes e eles odeiam porque pensam que não se pode fazer algo assim. Eu acho que eles invejam o espaço que tenho. — Heinz Emigholz [1]

Para humanizar essas obras, entretanto, o cineasta não renega todos os conceitos tradicionais da área. Em vez disso, potencializa sua eficácia com uma mise-en-scène totalmente alinhada com esse objetivo. Por exemplo, ele reconhece a importância do contexto da arquitetura, sempre expondo a relação das obras com o entorno – há, inclusive, “fotografias” nas quais ele radicaliza esse conceito e a construção aparece em apenas um canto da imagem ou completamente escondida atrás da vegetação. Além disso, a relação da obra com o usuário também é valorizada – em diversos momentos percebe-se a presença humana, seja visualmente ou pelo barulho das vozes.

Emigholz tira partido do formato cinematográfico ao capturar o efeito do vento nos objetos em cena, o movimento das pessoas e carros, as mudanças na iluminação ao longo do tempo e os sons ambientes. Para além do plano, a montagem propõe um passeio lógico pelo local, permitindo a construção de uma imagem mental tridimensional do espaço. Assim, o diretor expande ainda mais o realismo desse registro arquitetônico ao fornecer [quase] toda a experiência sensorial de percorrer aquelas obras, aproximando o máximo possível o expectador do que seria a real vivência dessas locações.

Pode-se dizer, então, que o diretor, no geral, goza de possibilidades que apenas o cinema concede, seja no campo técnico, capturando o som e o movimento, seja nas regras menos rígidas no cânone da linguagem, que permite composições “imperfeitas”. Veja, o cinema, ao contrário da fotografia milimetricamente calculada e alinhada com as linhas do ambiente, opera mais espontaneamente – da câmera na mão ao plano no tripé, a mise-en-scène é mais livre para filmar o ambiente sem receio de borrá-lo, distorcê-lo ou não o enquadrar totalmente em um plano só.

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Imagem de Maillarts Brücken (2001), de Heinz Emigholz.

É claro que o cineasta não foi o primeiro a reconhecer o potencial dessa mídia na exploração dos cenários, ou mesmo na documentação totalmente dedicada aos espaços arquitetônicos. O documentário hagiográfico de Hiroshi Teshigahara sobre a obra de Antoni Gaudí certamente exerce algum grau de influência em seu trabalho, desde a forma que filma os edifícios, à negação de uma abordagem professoral através de narração.

Não se visa aqui fazer juízo de valor ou questionar os padrões do registro arquitetônico mais comercial, mas analisar como a estética vanguardista do diretor em questão cria um efeito de aproximação do expectador aos espaços filmados. Há, inclusive, cineastas que tiram proveito do efeito mais asséptico das composições habituais da fotografia de arquitetura para decupar roteiros taciturnos ao conferir uma melancolia sufocante aos cenários, como faz Kogonada em Columbus (2017).

Em seus filmes, Heinz Emigholz atinge um equilíbrio considerável entre experimentação formal e análise conteudista. Enquanto explora os limites estilísticos do registro arquitetônico e, referindo a Michael Sicinski, expande o potencial da fotografia de arquitetura através do plano estático pelo qual vivenciamos a inércia através de um momento no tempo [2], ele ainda está interessado em capturar a essência dessas estruturas, o que faz prezando pelo realismo e pela honestidade: filma o entorno, a pichação, a rachadura e a mancha no concreto.

Notas:
1. BARATTO, Romullo. Entrevista com Heinz Emigholz: Diálogos cruzados entre cinema e arquitetura. ArchDaily Brasil. Acesso em: 27 Mar. 2020.
2. SICINSKI, Michael. Architecture and Beyond: Heinz Emigholz’s Canted Vision. MUBI.Acesso em: 28 Mar. 2020.

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Sobre este autor
Cita: Khalil Vasconcelos. "Heinz Emigholz: irreverência e desmistificação na fotografia arquitetônica" 22 Abr 2022. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/980343/heinz-emigholz-irreverencia-e-desmistificacao-na-fotografia-arquitetonica> ISSN 0719-8906

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